Um mundo sem covid-19 parece uma realidade longínqua, mas um dia esse mundo voltará a existir. Infelizmente, muito depois de a doença ter desaparecido, ainda viveremos com as ondas de choque do racismo ampliado por esta crise.
Quão mais exasperados são os tempos, mais excessos se cometem. Depois de semanas de quarentena, recorda-se já com saudades o “mundo antes de covid-19”. Não há dúvida que há um mundo pré e pós-covid-19. No entanto, não podemos cair no erro de embelezar um mundo, que por si só já pecava por defeitos.
E é precisamente baseados nestes defeitos, sendo um destes defeitos o racismo, que muitos excessos se estão a cometer. Em Janeiro e Fevereiro a maior parte dos casos de racismo a que se assistiu relacionados com a covid-19 foi contra asiáticos, por o surto se encontrar descontrolado quase apenas na China. Discriminou-se indiscriminadamente, passe-se a redundância, pois bastava parecer asiático, e não necessariamente chinês, para ser vítima de discriminação. Se a nova estirpe do coronavírus praticamente não sofre de mutações, o mesmo não se aplica ao racismo, que se transforma, adapta e multiplica. Ironicamente, a situação neste momento inverteu-se e são os estrangeiros que se encontram na China que sofrem de racismo.
Perceba-se o contexto: há um mês que estrangeiros estão proibidos de entrar no país. Esta proibição não é racista, mas significa que os estrangeiros que se encontram na China têm virtualmente as mesmas possibilidades de ser fonte de transmissão como qualquer outro cidadão chinês. Infelizmente, muitos negócios estão atualmente a proibir a entrada de cidadãos estrangeiros nas suas instalações. Mesmo com o registro pessoal e digital da “carta de saúde”, uma forma oficial de demonstrar que pelo seu histórico de deslocações e encontros sociais não há perigo de contágio, a entrada acaba por ser negada a estrangeiros. Bares, restaurantes, cabeleireiros e até farmácias negam entradas baseando-se apenas na origem da pessoa. Muitos negócios fazem referência a indicações do Governo para proceder desta forma, embora tal ainda não tenha sido oficialmente comprovado.
Mas dentro da própria China há também chineses a serem discriminados. A população de Wuhan começa a poder sair da cidade e a retornar a outros locais na China, onde dizem sofrer de discriminação. Os habitantes de Wuhan dizem aos restantes cidadãos chineses “não serem o vírus”. Entretanto, os chineses e cidadãos de etnia asiática dizem ao resto do mundo “não serem o vírus”. Seguidamente, foi a vez de estrangeiros na China começarem a dizer aos chineses que também eles “não são o vírus”.
É um ciclo vicioso e o episódio chinês acima descrito é apenas a ponta do icebergue. Conhecidos são os casos de professores atacados em Timor-leste, mas os casos de racismo seguem pelo mundo fora. O autor negro Eusebius McKaiser revela que no continente africano existe em certas facções um sentimento de ajuste de contas, pelos ressentimentos existentes em relação aos países afectados. Talvez isso explique o sentimento de revolta quase universal, quando um médico francês sugeriu que as vacinas contra a covid-19 também poderiam ser testadas em África. Veredicto das redes sociais: África não é o laboratório da Europa. No Quénia, um deputado sugeriu que a população apedreje os chineses que não respeitem as regras de quarentena impostas pelo país. Na Etiópia, a embaixada dos Estados Unidos avisou os seus cidadãos de um “sentimento anti-estrangeiro” no país. Em Angola, apenas os passageiros que não são “filhos ou familiares do regime de Luanda” têm de passar por quarentena. Na Tailândia, o ministro da Saúde acusou os estrangeiros sujos de importarem a doença para o país.
Racismo, tal como o coronavírus, não conhece fronteiras, etnias ou gêneros. Um mundo sem covid-19 parece uma realidade longínqua, mas um dia esse mundo voltará a existir. Infelizmente, muito depois de a doença ter desaparecido, ainda viveremos com as ondas de choque do racismo ampliado por esta crise. Este problema não pode ser ignorado: é este o momento destes atos serem criticados pelos representantes governamentais de cada país e também das Nações Unidas. Ninguém é um vírus. E cabe a cada um de nós derrotar o vírus do racismo.
Fonte: João Rodrigues, do Publico – https://www.geledes.org.br
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